domingo, 1 de fevereiro de 2015

DRUMOND, O POETA QUE DECIFROU OS BEATLES.

Em março de 1969, os editores da extinta revista Realidade tiveram a feliz ideia de convidar o poeta Carlos Drummond de Andrade e lhe propor uma tarefa inusitada: traduzir seis músicas do então recém-lançado “Álbum Branco”, dos Beatles. O resultado da empreitada saiu melhor do que a encomenda. Drummond deu graça e estilo à letras de John Lennon, Paul McCartney e George Harrison.
CARLOS DRMOND DE ANDRADE 
O poeta Carlos Drummond de Andrade, que traduziu seis músicas do Álbum Branco, dos Beatles, para a revista Realidade, em março de 1969.

Março de 1969.  Quatro meses antes, os Beatles haviam lançado o Álbum Branco, que, como sempre acontecia naqueles tempos, chegava atrasado ao Brasil. Era o sucessor do Sargento Pimenta. Tinha de ser tão bom quanto. Nas emissoras de rádio, apresentadores falavam, entre surpresos e chocados, que uma das músicas seria pornográfica: ” Por que não fazemos aqui na estrada? Ninguém vai nos ver”. Outros diziam que, assim como no Pimenta, havia músicas falando sobre drogas…e assim por diante. O que havia de verdade nisso tudo? Alguém precisaria resolver mais esse mistério que cercava os Beatles.
Pena leve - Foi então que os editores da saudosa revista Realidade, que circulou mensalmente por dez anos, entre 1966 e 1976, teve a mãe de todas as ideias: mergulhar nas letras do novo álbum e explicá-las. Para essa empreitada era preciso alguém de pena leve, elegante, especial, insuspeito. E convidaram um dos maiores poetas brasileiros, para muitos o maior, para traduzir seis músicas. E lá foi Carlos Drummond de Andrade decifrar os Beatles.
BLACKBIRD
Blackbird, que na tradução de Drummond vou Melro.
 A despojada e melódica Blackbird, gravada por Paul McCartney acompanhado por apenas um violão e a marcação de um metrônomo, ganhou contornos de esperança na tradução de Drummond:
BLACKBIRD:
Blackbird singing in the dead of night
Take these broken wings and learn to fly
All your life
You were only waiting for this moment to arise.
Blackbird singing in the dead of night
Take these sunken eyes and learn to see
All your life
You were only waiting for this moment to be free.
Blackbird fly, Blackbird fly
Into the light of the dark black night.
Blackbird fly, Blackbird fly
Into the light of the dark black night.
Blackbird singing in the dead of night
Take these broken wings and learn to fly
All your life
You were only waiting for this moment to arise
You were only waiting for this moment to arise
You were only waiting for this moment to arise.

MELRO:
Melro que cantas no morrer da noite,
com estas asas rotas aprende teu voo
A vida toda
esperaste a hora e a vez de teu voo.
Melro que cantas no morrer da noite,
com estes olhos fundos aprende a ver
A vida toda
esperaste a hora e a vez de ser livre.
Voa, melro, voa, melro,
para o clarão da escura noite.
Voa, melro, voa, melro,
para o clarão da escura noite.
Melro que cantas no morrer da noite,
com estas asas rotas aprende teu voo
A vida toda
esperaste a hora e a vez de teu voo
esperaste a hora e a vez de teu voo
esperaste a hora e a vez de teu voo.

HAPPINESS IS A WARM GUN
Em Happiness Is a Warm Gun, Drummond não se deixou levar  pela gíria inglesa da época (ou não a conhecia) e traduziu “I need a fix” como “Preciso de justa-causa”, o que não faz muito sentido em relação ao resto da letra. “A fix”, na gíria inglesa, pode significar tanto um ponto de apoio, um trago ou ainda uma injeção (de alguma droga). Difícil saber o que John Lennon quis dizer com o verso, embora seja possível depreender sua dependência da droga.
HAPPINESS IS A WARM GUN
She’s not a girl who misses much
Do do do do do do do do
She’s well acquainted with the touch of the velvet hand
Like a lizard on a window pane.
The man in the crowd with the multicoloured mirrors
On his hobnail boots
Lying with his eyes while his hands are busy
Working overtime
A soap impression of his wife which he ate
And donated to the National Trust.
I need a fix ’cause I’m going down
Down to the bits that I left uptown
I need a fix cause I’m going down
Mother Superior jump the gun
Mother Superior jump the gun
Mother Superior jump the gun
Mother Superior jump the gun.
Happiness is a warm gun
Happiness is a warm gun
When I hold you in my arms
And I feel my finger on your trigger
I know no one can do me no harm
Because happiness is a warm gun
— Yes it is.

 A FELICIDADE É UMA ARMA QUENTE
A Felicidade é um Revólver Quente
Até que essa garota não erra muito
oi  oi  oi  oi  oi  oi  oi  oi
Acostumou-se ao roçar da mão-de-veludo
como lagartixa na vidraça.
O cara da multidão, com espelhos multicores
sobre seus sapatões ferrados
descansa os olhos enquanto as mãos se ocupam
no trabalho de horas extraordinárias
com a saponácea impressão de sua mulher
que ele papou e doou ao Depósito Público.
Preciso de justa-causa porque vou rolando para baixo
para baixo, para os pedaços que deixei na cidade-alta,
preciso de justa-causa porque vou rolando para baixo
Madre Superiora dispara o revólver
Madre Superiora dispara o revólver
Madre Superiora dispara o revólver
A felicidade é um revólver quente
A felicidade é um revólver quente
Quando te pego nos braços
e meus dedos sinto em teu gatilho,
ninguém mais pode com a gente,
pois a felicidade é um revólver quente
lá isso é.

OBLADI OBLADA
1) A tradução de Obladi Oblada é singela e guarda a alegria que a letra original quer passar, com os personagens Desmond e Molly se alternando entre cantar numa banda e se embelezar em casa.
OBLADI OBLADA
Desmond has a barrow in the market place
Molly is the singer in a band
Desmond says to Molly — girl I like your face
And Molly says this as she takes him by the hand
Ob-la-di ob-la-da life goes on bra
La-la how the life goes on
Ob-la-di ob-la-da life goes on bra
Lala how the life goes on
Desmond takes a trolley to the jewellers store
Buys a twenty carat golden ring
Takes it back to Molly waiting at the door
And as he gives it to her she begins to sing
In a couple of years they have built
A home sweet home
With a couple of kids running in the yard
Of Desmond and Molly Jones
Happy ever after in the market place
Desmond lets the children lend a hand
Molly stays at home and does her pretty face
And in the evening she still sings it with the band
Happy ever after in the market place
Molly lets the children lend a hand
Desmond stays at home and does his pretty face
And in the evening she still sings it with the band
And if you want some fun…
Take Obladi oblada.

OBLADI OBLADA
Desmond tem um carrinho na Praça do Mercado.
Molly vocaliza num conjunto.
Desmond diz a Molly: Por teu rosto sou vidrado
Molly diz-lhe: O quê? e pega-lhe na mão.
Obladi, obladá, a vida continua: olá,
olalá, como a vida continua!
Obladi, obladá, a vida continua… Olá,
olalá, como a vida continua!
Desmond toma o ônibus, vai à joalheria
compra anel de ouro de ofuscar
e leva-o a Molly, que espera junto à porta.
De anel no dedo, eis Molly a cantar.
Em um par de anos terão construído
um lar bacana doce que nem cana.
Um par de garotos corre pelo pátio
desse casal unido.
Olha Desmond feliz na Praça do Mercado.
Ao lado, os molequinhos ajudando.
Molly ficou em casa se enfeitando
e à noite ainda canta no conjunto.
Olha Molly feliz na Praça do Mercado.
Ao lado, os molequinhos ajudando.
Desmond ficou em casa se enfeitando
e à noite ela ainda canta no conjunto.
E se querem se divertir, obladi, obladá!

I WILL
 I Will revelou-se uma canção de amor:
I WILL
Who knows how long I’ve loved you
You know I love you still,
Will I wait a lonely lifetime,
If you want me to I will.
For if I ever saw you,
I didn’t catch your name,
But it never really mattered,
I will always feel the same.
Love you forever and forever,
Love you with all my heart;
Love you whenever we’re together,
Love you when we’re apart.
And when at last I find you,
Your song will fill the air,
Sing it loud so I can hear you,
Make it easy to be near you,
For the things you do endear you to me,
oh, you know I will.
I will.

FAREI TUDO
Desde sempre te amei
e bem sabes que ainda te amo.
Devo esperar toda a vida?
Se quiseres — esperarei.
Se alguma vez te vi
nem sequer teu nome escutei.
Mas isso não faz diferença:
sempre a mesma coisa sentirei.
Eu te amarei por todo o sempre, sempre,
desde a raiz do meu coração
e te amarei quando estivermos juntos
e te amarei na solidão.
Quando finalmente te encontrar
tua canção envolverá o espaço.
Canta bem alto, para eu escutar.
Tudo farei para te dar o braço
pois tudo em ti me prende a mim.
Bem sabes que farei tudo
tudo farei.

WHY DONT' WE DO IT IN THE ROAD?

Em Why Don’t We Do It In The Road?, uma tradução literal:
WHY DONT' WE DO IT IN THE ROAD?
Why Don’t We Do It in the Road?
Why don’t we do it in the road?
No one will be watching us
Why don’t we do it in the road?

E POR QUE NÃO AQUI NA ESTRADA?
E por que não aqui na Estrada?
Não há ninguém para ver nada
E por que não aqui na estrada?

PIGGIES

E finalmente Piggies, de George Harrison, teria inspirado o lunático Charles Manson e seu bando a assassinar a atriz Sharon Tate, em 9 de agosto de 1969. Ela estava grávida de oito meses do cineasta Roman Polanski e foi morta a facadas. Na tradução de Drummond, nada que pudesse sugerir uma violência dessas:
PIGGIES
Have you seen the little piggies
Crawling in the dirt?
And for all the little piggies
Life is getting worse
Always having dirt to play around in
Have you seen the bigger piggies
In their starched white shirts?
You will find the bigger piggies
Stirring up the dirt
Always have clean shirts to play around in.
In their styes with all their backing
They don’t care what goes on around
In their eyes there’s something lacking
What they need’s a damn good whacking.
Everywhere there’s lots of piggies
Living piggy lives
You can see them out for dinner
With their piggy wives
Clutching forks and knives to eat their bacon.
PORCOS
Viste os porquinhos
rebolando na imundície?
Para todos os porquinhos
a vida está cada vez mais difícil
e brincam sempre na sujeira por aí.
Viste os mais taludos porquinhos
em suas engomadas, alvíssimas camisas?
Olha os mais taludos porquinhos
em algazarra na imundície
com camisas alvíssimas a folgar por aí.
Em seus chiqueiros, plenamente protegidos,
ao que vai por aí nem ligam.
Nos olhos deles falta uma coisinha:
precisam mesmo é de suma porcaria.
Por toda parte há muitos porquinhos
vivendo suas porquinhas vidas.
Podes vê-los para o jantar saindo
com suas porquinhas mulherinhas
de garfo e faquinha para comer presunto.

Acesso - De março de 1969, quando o número 36 de Realidade publicou as traduções, até meados de 2002, quando foram comemorados os cem anos do nascimento de Drummond, o trabalho ficou mais ou menos restrito aos conhecedores da revista e a frequentadores do meio literário ou beatlemaníaco.
Dessa data em diante, com a disponibilização dos versos na internet, o acesso pôde se universalizar.

fotos:
Divulgação

fonte:
CARLOS DE OLIVEIRA
http://cultura.estadao.com.br/blogs/sonoridades/drummond-o-poeta-que-decifrou-os-beatles/

Nenhum comentário:

Postar um comentário